(Imagem de Companhia Editora Nacional)
Testemunho de Alexandra Caracol (passou-se quando eu tinha 9 anos e estava em África.
Estava-se no mês de abril de 1974.
Subitamente, ouviu-se um enorme estrondo e sons que pareciam tiros de balas.
«Que se passaria?», pensei.
O meu tio mais novo abriu a porta da rua e entrou esbaforido em casa. Os estrondos continuavam a assustar-me e ao meu cão, e acabamos por nos esconder no quarto de brinquedos, encolhidos a um canto.
– Mãe, pai, venham cá! Temos que sair daqui o mais depressa possível – gritou o meu tio aflito.
– Que se passa?! Para quê tanta gritaria e que estrondos são estes?!
O meu tio explicou que a ditadura fascista tinha caído e que tinha eclodido uma revolução. Os membros e simpatizantes dos três partidos políticos existentes em Angola lutavam entre si pelo poder.
Os brancos foram considerados inimigos da revolução, ou seja, aqueles que supostamente tinham enriquecido à custa da exploração do povo angolano, nem que fosse por morarem lá, terem os seus negócios ou trabalharem para alguém.
Nós éramos brancos e os meus avós, oriundos dos Açores, em novos tinham vendido todos os seus bens e tinham partido para África, na tentativa de fugirem às consequências da ditadura, que se refletia também nas ilhas açorianas. Por receio da perseguição, por sermos uma família contra o regime desde a primeira guerra mundial, meus avós partiram para África com o fruto da venda dos seus bens, levando seus três filhos pequenos, entre eles minha mãe.
Segundo o que o meu tio explicou, África já não era segura para os brancos viverem, assim meus avós contataram familiares influentes na Metrópole, pedindo ajuda.
Embora fosse difícil arranjar lugar no avião, pelo facto de existirem listas de espera infindáveis, conseguimos lugares, através de pedidos desses nossos familiares, para o final de agosto desse mesmo ano. Até lá tivemos que, para nossa proteção, viver em clausura, saindo pouco, para não darmos nas vistas, evitando assim sermos presos e torturados, ou até mortos, tal como aconteceu com outras famílias.
Durante aqueles meses, a minha mãe proibiu-me de me aproximar das janelas da casa, apesar de as janelas serem mantidas fechadas, para não chamar a atenção a olhos indiscretos e também para nossa proteção.
Os dias passavam e as bombas e roquetes não paravam de cair. As paredes grossas da casa iam ficando cravejadas de balas. A luz faltava com frequência e a água escasseava, assim como os alimentos.
Felizmente, antes de a guerra deflagrar, num dia em que eu brincara com o meu cão, enchi muitos recipientes com água, que passaram a ocupar o chão da grande garagem que a moradia tinha. Foi essa água, fruto da brincadeira, que nos permitiu sobreviver até à data de partirmos para Lisboa.
As poucas malas que pudemos levar, para não dar nas vistas, foram colocadas no carro, e dirigimo-nos para o aeroporto.
Eu levei o meu cão comigo e agarrava-o com afinco, pois tinha medo de perder o meu grande amigo.
A minha mãe tinha tentado convencer-me a deixá-lo para trás, mas chorei tanto que ela não teve coragem de o deixar.
A caminho do aeroporto, ficamos chocados ao vermos passar camionetas repletas de cadáveres.
Perto da entrada do aeroporto, um grupo considerável de porcos e cães rodeavam um amontoado de cadáveres, lutando entre eles, tentando ganhar um lugar que lhes permitisse saciarem-se naquela podridão.
Estas imagens, referentes ao dia da minha partida da terra que um dia me viu nascer, ficaram gravadas na minha memória até hoje.
No caminho de casa para o aeroporto, o meu avô deu a conhecer à família de que não iria partir nesse dia, connosco; ia ficar algum tempo para tentar mandar dinheiro para a Metrópole, para que pudéssemos ter uma vida mais facilitada. Queria salvar algum fruto do trabalho a que tanto se dedicara naquela terra, durante mais de 30 anos.
Ficamos muito preocupados ao saber que o avô ficaria em Luanda por mais tempo, mas nada o convenceu a partir connosco.
Ao chegarmos ao aeroporto, as filas de pessoas deitadas no chão eram enormes. As crianças choravam de fome. Aquele lugar exalava um cheiro nauseabundo, resultante do calor e da falta de asseio.
Instalados, junto da janela despedi-me de Luanda, já saudosa daquelas paisagens maravilhosas, mas aliviada por sair da clausura em que tinha estado.
Um dia, recebemos a notícia da chegada do meu avô.
Finalmente tinha desistido de tentar transformar os seus bens em dinheiro e retirá-los de Angola.
Conseguimos ver o avô, por entre as pessoas que enchiam a gare. Em poucos anos, tinha-se tornado num avô bem mais velho. A sua aparência outrora robusta, viva e vitoriosa, fazia transparecer agora uma pessoa magra, pálida, triste, de olhar mortiço e desiludido.
De repente, o meu avô começou aos gritos:
– Ladrão! Ladrão!
O meu avô agarrou-se com força a um rapaz jovem e, atirando-o ao chão, demonstrou um resto da genica que ainda lhe sobejava. Arrancou das mãos do jovem a carteira que tinha roubado e, dirigindo-se à família que o esperava, disse tristemente:
Poucos anos depois o avô passava os dias sentado no sofá a olhar para o vazio, num completo mutismo.
Senti tristeza ao olhar para aquele homem que outrora, em Luanda, tinha sido um industrial dinâmico e famoso, tendo-o conseguido à custa de muito trabalho e dedicação.
«Sem uma visão o povo perece!». Foi esta a verdade que aconteceu ao meu avô. Perdeu a capacidade de sonhar, de visualizar o futuro e isso matou-o por dentro.
Tudo se perdera pelas terras de África. Tantos anos gastos em dedicação ao trabalho e àquela terra e afinal, na velhice, viveu de uma pensão simbólica, que mal dava para as despesas essenciais.
Este foi o outro lado da (maravilhosa) revolução do 25 de abril em que tanto os que estavam na Metrópole sofreram com a enchente de retornados que chegaram a Portugal, assim como os que ficaram desamparados, sem sonhos, sem trabalho, sem património e escorraçados da terra onde trabalharam arduamente, e que nada tinham a ver com guerra.
Liberdade sim! Eu sou por ela! Ninguém deve viver amordaçado e ser torturado por expressar a sua forma diferente de pensar, como aconteceu com o meu tio mais velho (economista e escritor) que foi preso e torturado antes do 25 de abril, porque era contra o regime.
Mas há que reconhecer que foi tudo muito mal feito e que, por causa da política, sofreram os que estavam na Metrópole e os que estavam nas então colónias.
Mais haveria a ser dito e acredito que muitas são as histórias que existem por aí. Histórias de sofrimento resultante da guerra e de uma revolução/descolonização mal realizada.
Partilho também que não concordo com o sofrimento dos nativos das ex-colónias, que acredito que sofrem até hoje, por tantas injustiças cometidas contra eles, tanto por alguns brancos que os exploraram antes da independência, mas também por muito do que tem acontecido pós independência.
Que os erros do passado possam não ser repetidos e que sirvam de lição às gerações vindouras.
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